LIBELULA

oh senhor!

 

I

o modo como ela ouvia a chuva

no último momento o rapaz lhe salva

quase sempre ele

vai pela calçada

calça justa cabelos negros

sobre a pista de dança daquele modo

como ele

o rapaz

dançava

o corpo nos 70 aquele rapaz

o modo como agora ela reza senhor

saída de um retábulo hieronymus

sobre a mesa da sala

os pássaros monstros voando como balas

estilhaçando as janelas de um céu azul

os pássaros sem modos do amanhecer

os estridentes “eles”

cristais presos ao vidro

as balas azuis as balas

os cavaleiros com suas caras

a cruz no peito estilhaçado pelos mesmos pássaros

a sala a vala rasa a vara dos

treze anjos no teto a casa

são anjos com olhar afiado

de oh piedade senhor tende de nós

o modo como ela sabia das flores dias

e dias lilases branco pálidos como seu rosto

e as flores até enegrecerem secarem

vivas como velas

tremulando sobre as paredes

bebendo as noites de celan

o modo como ela atravessava e bebia o corredor

e a noite varava

oh senhor!

[jussara salazar| 2011]

kiki alice

a colheita de peixes

 

                 [para mariana salazar]

Não falarei da chuva que cai. Apagando a

fumaça das fogueiras. Encharcando as ruas

lotadas de turistas

zanzando subindo e descendo

naquele navio desproporcional que se aproxima

ou se afasta devolvendo a geometria e a exatidão

das pedras sujas do cais. Monstro marítimo

que arrasta o corpo pesado

esse navio simula uma falsa solidão. Imagino seu convés

abarrotado de turistas mexicanos que no breakfast

pela manhã desdobram

entre risadas

seus mapas de papel fino. Fazem planos

para uma próxima invasão à tarde. Uma visita ao planetário?

Não falarei do cheiro das algas marinhas

ou de como o contorno de banhistas

perdidos com suas silhuetas anônimas

vão desaparecendo feito formigas na areia.

Entre as manobras do prático

as redes vão capturar sua colheita magra de peixes

Não falarei. Direi ao mar:

os teus peixes morrem

mas o mar não escuta

move

as negras ondas

as negras mãos líquidas

que não gesticulam mas gritam

palavras desconhecidas

em línguas estranhas

Não falarei enquanto falo ao mar. E ouço nomes

que se assemelham ao teu nome. O querubim

de olhos engraçados e sem um braço

repete também o teu nome

um mantra

uma loa

um poema monótono

um poema bélico. Não falarei sobre a dúvida

ou as bifurcações impossíveis

das quadras em forma de triângulo nas ruas

de um bairro distante do cais. Nem das pequenas ondas

lentas e  mornas

que se acinzentam com essa chuva monótona

e do barulho inaudível que escuto

Não falarei das ondas. Nunca

as ondas roçando o teu torso macio

anjo vagando sem rumo

mutilado

boiando

apodrecendo

nesse vaivém das águas

                             | jussara salazar | img kiki smith |

buñuel

A vaca veio falar com meu pai. Ele a recebeu em seu escritório. A vaca falava com voz rouca, em seu nome e em nome de outras vacas.

Recordou o dia gelado em que nascera, a mãe que lhe banhava e deu-lhe o leite, o ciclame que trouxera nas têmporas ao nascer, como reflexo de sua triste sina, da faca.

Lá fora estão o Jasmim do Paraguay, todo salpicado de azul, açúcar e orvalho, e as tartarugas andando imóveis sob o prato, sérias e despreocupadas.

A vaca falava com voz rouca em seu nome e em nome de outras vacas. Papai olhou seu áspero casaco e os sapatos redondos e naturais.

Mamãe e suas primas se juntaram para escutar.

A vaca olhou papai com olhos cor de água.

Papai baixou os seus sem prometer-lhe nada.

***

La vaca vino a hablar con mi padre. Él la recibió en su escritorio. La vaca hablaba con ronca voz, en nombre de sí

y de las otras vacas.

Recordó el día de hielo en que nacía, la madre que la bañaba y le dio la leche, el cyclamen que trajo en las sienes al nacer, como reflejo de su sino triste, del cuchillo.

Afuera están el Jazmín del Paraguay, todo nevado de azul, azúcar y rocío, y las tortugas andando inmóviles bajo el plato, serias y despreocupadas.

La vaca hablaba con ronca voz, en su nombre y en el de las otras vacas. Papá le miró el áspero mantón y los redondos zapatos naturales.

Mamá y sus primas se asomaron a escuchar.

La vaca miró a papá con ojos color de agua.

Papá bajó los suyos, sin prometerle nada.

marosa di giorgio | uruguay | tradução: jussara salazar

img. luís buñuel

sem-estilo

Imagem

1

Antes que sua filha de cinco anos

se perdesse entre a sala de jantar e a cozinha,

ele advertira-lhe: “- Esta casa não é grande nem pequena,

mas ao menor descuido se apagarão os sinais da rota

e desta vida por fim, haverás perdido toda esperança”.

2

Antes que seu filho de 10 anos se perdesse

entre o banheiro e o quarto de brinquedos,

ele advertira-lhe: “ – Esta, a casa em que vives,

não é larga nem fina: só fina como um cabelo

e larga talvez  como a aurora,

porém ao menor descuido esquecerás os sinais da rota

e desta vida por fim, haverás perdido toda esperança”.

3.

Antes que “Musch” e “Guba”, os gatos da casa,

desaparecessem no living

entre umas almofadas e um Buda de porcelana,

ele advertira-lhes:

“ – Esta casa que dividimos durante tantos anos

é baixinha como o solo e tão alta ou…

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escada1

aproximo o espelho, uma nesga de sol sobre o café enquanto leio e você se recosta estendido na cama, filosofando a respeito dos sabonetes baratos do hotel e o olhar enviesado da camareira. agora seu corpo confunde-se embaixo do chuveiro, a pele flexível é uma sombra na cidade, a pele flexível tem febre e caminha pela tarde na grande avenida entre as colinas de são sebastião, o êxtase de santa teresa, pilhas de livros e demônios de louça que riem entre dez perguntas sem nexo _ ? entediar-me em cantos de maldizer o silêncio? visto o casaco, amarro os sapatos e um fio de luz sobe pelo teto_ imitações de miniaturas gregas são rituais de desejo sobre as paredes sentimentais do casarão antigo com suas portas numeradas e escadas, labirintos por onde fugirei para a rua se a noite vier_ e hás de dormir_ ah cordeiro – tua sonhada leveza enquanto chafurdarei na terra molhada

| jussara salazar |

a parede olinda

A imagem de minha casa

cresce sobre a parede

o teatro de sombras curva-se

roça a linha da hera

verga argumentos

o jorro da água cega

ao longe baby-jesus está descalço

dez ideias para um futuro

presságios vêm das nuvens

e meu corpo curva-se

no campo sobre a parede da casa

terra sem habitantes

câmara de ecos ressoa a tua voz

areia, flor, seixo

sopro antigo no meio do aveloz

pela da serra da borborema

                                                                                                           jussara salazar | abril.2015.

kiki sm

Caminhando entre os corredores sombrios do museu perdi o anel. Entre as sete igrejas do apocalipse buscar, unhas pintadas de esmalte barato, aonde? Perdida na multidão entre turistas ávidos por mais uma pose. Percorrer o caminho que me traria de volta. Trairia? Haveria outro anel igual ou parecido, não importa. Ao lado da ponte entrar na pequena loja de antiguidades? O homem, paciente, me olha, fala seu francês pausado. Aponta para as etiquetas. Perder o anel logo hoje. Exibir os dedos feios e enrugados pelo frio. O hindu sorri para mim. Diz que os deuses negociam essas coisas. Levam anéis para não levar… o quê mesmo? Agora um anel da Jeanne D’Anjou – desde 1887- valeria uma vida? Enquanto a garota japonesa joga seu estoque de sorrisos via msg eu caminho pela margem do rio. Estou na multidão. Percorrer o mesmo caminho e voltar. E buscar. O quê mesmo?

jussara salazar | img. kiki smith

pergamo_editado-1

Ai! Lancei as minhas redes aos mares deles para apanhar peixes,

mas tão só pesquei a cabeça de um deus antigo. Assim deu o mar

uma pedra ao faminto. E os próprios poetas parecem vir do mar.

[Assim falou Zaratustra| Nietzche]

i

Ah no Pérgamon as cabeças não se movem. Brancas, arenosas, pétreas. Zeus tem os olhos fixos brilhando para um futuro que não virá. Porque as cabeças de Pérgamon deixaram para trás um corpo perdido. Esses corpos foram encontrados e agora estão ali. São muitos pedaços como atores de um teatro pós-apocalíptico.

Primeiro o escavador descobriu alguns torsos e mãos. Depois vieram as pernas, os pés e muitos braços. Fragmentos vivos na memória de mutilações e guerras. Brilham agora como destroços no grande parque de corpos dependurados. Um amontoado de corpos sem ossos. Sem nervos. Gloriosos, expõem-se como puzzles, encaixes na tentativa de provar que foram corpos íntegros. Corpos com carne. Por isso se desorganizaram e brotam das paredes como fissuras sem agonia. Exibem-se. São raízes subindo, descendo sua nudez decepada. Seu sexo clássico. Suas cabeças degoladas. Suas cabeleiras espessas. Suas mãos inúteis e pés cristãos.

ii

Para descrever esses corpos é preciso uma fração de segundo. Deuses se transformam. Não se repetem em sua luta para sobreviver. Já são sobreviventes. Porque não sobreviveram. E flutuam sem memória alguma. Dispersaram-se. São entulhos do pós-guerra. Corpos desenterrados que o capim não cobriu. E por isso a desordem. E enquanto morrem os animais esses corpos flutuam. São corpos sem peso que testemunham as nossas lembranças. Sem espasmsos. Silenciosamente. Sem nenhuma dor.

iii

Um zumbido pancrônico anuncia: os deuses chegaram. Aparelhados agora são corpos em movimento. Antena nos dedos, nadam como peixes no grande aquário humano. As máscaras, os músculos, brilham nas paredes do túnel. Vasculham a área. Ideogramas brilham sob o anúncio. A forma: uma papoula? Azul. Klein. Um blues sequer não há nem god save the queen. Nem pássaros. Mas os flashes estalam sobre os corpos. Coxas. Ruídos. Noé embriagado. Luz e trevas. Um braço de fiberglass. As sibilas e os profetas apontam para o céu. A terra arde numa festa de corpos.

Publicado em Hiperconexões: realidade expandida | volume2 | Org. Luiz Brás, 2014

foto urban

paredes

prateleiras

armários

paisagens

linhas de um horizonte

arabescos íntimos. Como não imaginá-la

a casa – esse corpo sentimental?

paredes vazias

revelam a outra casa que se esconde atrás dessa

a verdadeira pele da casa

na imperfeição de seu relevo

revelação de si mesma

última página

derradeira casca da cebola

alvejada por uma rajada de balas cegas

Um front. Paredes em silêncio

marcas

vestígios de guerras

corpos irregulares

espaço nulo

buracos escavados. Talvez recordem

o dia em que você acordou feliz

e dançou um samba na sala

depois de um gin tônica

se não me engano. A música

e o olhar para as grandes janelas

voltadas para um mar de outras janelas

mar de pequenas luzes

sirenes

sinos

alardes de crianças ao anoitecer.

Agora os móveis perfurados

desfeitos

desarmados

o outro lado das coisas

o inútil. Vistas de um ponto

atrás do palco

onde a entrada é proibida ao público

pedaços de avesso

escombros inacabados

improvisos. Restos de madeira

de uma antiga demolição

sem nexo e sem passado

que chegarão ao novo destino

sujos, encharcados pela chuva

que sem aviso cairá sobre o caminhão de mudança.

 A casa

agora vazia de objetos e risos

cala com seus segredos entre as frestas

na perda de reflexo do velho espelho. E o teu riso

sem que ninguém perceba

surgirá do nada

como um guarda-chuva esquecido há anos

para desaparecer outra vez

como o cão que segue um rosto anônimo

e some sem deixar vestígios

por uma rua

desconhecida e luminosa

                                                                                         jussara salazar| imagem joão urban

antonio filho

a cidade e o colecionador de peles

i

Vejo-te cidade a partir daqui. Enquanto a outra ondula sob o sol escancarado na esfera do dia que se vai. Um barco desapareceu fora do horizonte. Como um pêndulo oscila sua mis-en-scene? ou mis-en-plis que se dobra sobre as ondas, ode às sereias, carma. O oriente é depois da curva. E a cidade cospe a todos como um escarro. Imprecações ao Senhor. Desilusões. Al- racif-muralha, és a flor d’água, o estorvo, empata-foda, um corpo perdido. Calçada marítima não tens sequer profundidade enquanto abrigas o rapaz punhetando atrás de teus corais num domingo de praia alegre.

Vejo-te sob a linha do dique que é/foi um corpo submerso. Zênite que suspende as pedras e apara as cascas de crustáceos que os coreanos atiram pelas janelas enquanto trepam nos beliches de algum apart entre o décimo ou vigésimo de uma das torres.

Vejo-te mas calo. E não falarei sobre a chuva que ontem apagou a fumaça das fogueiras encharcando as ruas lotadas de turistas zanzando subindo, descendo seus corpitchos no navio desproporcional que se aproximava e se afastava roubando e devolvendo a geometria pesada da exatidão das pedras sujas do cais.

Monstro marítimo ele arrastava o corpo pesado, aquele navio, simulando uma falsa solidão enquanto o convés fervia abarrotado de turistas mexicanos que no breakfast desdobravam, entre risinhos, seus mapas de papel fino. Faziam planos para uma próxima invasão à tarde. Uma visita ao planetário? Aqui não há um planetário? Queixa-se a moça atrás dos óculos de aro vermelho.

Aqui não há planetários. Mas putas e tubarões rondam o navio.

Um close reading expõe uma quantidade de corpos, um falso bloco de nudistas, algaravias noturnas sob um azul violento que se divide em fatias cortadas com esmero bajo el sol de una faca cabralina – o mar azul, o céu azul – duas lâminas, duas medidas. Uma só cicatriz. A cidade.

Não falarei das algas marinhas exalando sua podridão ou de como o contorno de banhistas perdidos com suas silhuetas anônimas desaparecerão no horizonte como minúsculos insetos com seus dólares falsos trocados no câmbio negro. Alegria planejada. Entre as manobras do prático as redes hoje vão capturar uma colheita magra de peixes e algumas carcaças humanas abandonadas por algum predador marítimo.

Não falarei da cidade. Direi ao mar: os teus peixes morrem. Mas o mar não escutará e moverá as negras ondas as negras mãos líquidas que não gesticulam mas gritam palavras desconhecidas em línguas diabolicamente estranhas.

Não falarei enquanto falo ao mar. E ouço nomes que se assemelham ao teu nome. O querubim de olhos engraçados e sem um braço repete também o teu nome. Como um mantra, uma loa, um poema monótono, um poema bélico.

Não falarei sobre a dúvida ou as bifurcações impossíveis das quadras em forma de triângulo que se amontoam nas ruas de um bairro sujo e distante do porto. As pequenas ondas lentas e mornas se acinzentam com a chuva monótona de junho sob o barulho inaudível que se escuta. Mas também não falarei das ondas. Nunca as ondas roçando o teu torso macio de anjo, cidade michê vagando sem rumo, mutilada, boiando e apodrecendo nesse vaivém das águas.

ii

O navio se foi enquanto a mulher aguardava na fila do supermercado. Como um cão vadio ela guarda a noite e espera as portas se abrirem para escapar ao amanhecer. A cidade é esse cão vadio e agoniado que vaga sem rumo pelas ruas e aguarda palavras de amor num hotel barato. Debaixo da pele debaixo da roupa além da pele o corpo marcado da cidade aguarda.

A pele da cidade é um mapa. Cada parte da cidade é sua marca, uma cicatriz, um vestígio assombrado. Aquela mulher não sabe que o colecionador de peles está tão próximo. Ela, como a cidade, aguarda em cada esquina com seu corpo coberto de tatuagens e histórias.

Hoje as águas do canal invadiram a avenida. Aquela mulher é guido anselmi escapando. Fugindo pelo teto do carro para voar sobre a cidade. Fugindo dos vivos fugindo dos mortos presos atrás do vidro dos carros. Aquela mulher é um fellini. Um animal em retirada enquanto a procissão do Senhor morto atravessa.

O relógio está quebrado e o tempo ainda não sabe que toda beleza servirá apenas para recordar o garoto da noite anterior. As águas do canal baixaram. Debaixo da pele, debaixo da roupa além da pele o corpo daquela mulher aguarda. A cidade é o cão do poeta. A cidade está nua.

[jussara salazar | publicado em RECIFE E OUTRAS PARTES BAIXAS DO CORPO | 2014 | img. antonio filho]