a cidade e o colecionador de peles
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Vejo-te cidade a partir daqui. Enquanto a outra ondula sob o sol escancarado na esfera do dia que se vai. Um barco desapareceu fora do horizonte. Como um pêndulo oscila sua mis-en-scene? ou mis-en-plis que se dobra sobre as ondas, ode às sereias, carma. O oriente é depois da curva. E a cidade cospe a todos como um escarro. Imprecações ao Senhor. Desilusões. Al- racif-muralha, és a flor d’água, o estorvo, empata-foda, um corpo perdido. Calçada marítima não tens sequer profundidade enquanto abrigas o rapaz punhetando atrás de teus corais num domingo de praia alegre.
Vejo-te sob a linha do dique que é/foi um corpo submerso. Zênite que suspende as pedras e apara as cascas de crustáceos que os coreanos atiram pelas janelas enquanto trepam nos beliches de algum apart entre o décimo ou vigésimo de uma das torres.
Vejo-te mas calo. E não falarei sobre a chuva que ontem apagou a fumaça das fogueiras encharcando as ruas lotadas de turistas zanzando subindo, descendo seus corpitchos no navio desproporcional que se aproximava e se afastava roubando e devolvendo a geometria pesada da exatidão das pedras sujas do cais.
Monstro marítimo ele arrastava o corpo pesado, aquele navio, simulando uma falsa solidão enquanto o convés fervia abarrotado de turistas mexicanos que no breakfast desdobravam, entre risinhos, seus mapas de papel fino. Faziam planos para uma próxima invasão à tarde. Uma visita ao planetário? Aqui não há um planetário? Queixa-se a moça atrás dos óculos de aro vermelho.
Aqui não há planetários. Mas putas e tubarões rondam o navio.
Um close reading expõe uma quantidade de corpos, um falso bloco de nudistas, algaravias noturnas sob um azul violento que se divide em fatias cortadas com esmero bajo el sol de una faca cabralina – o mar azul, o céu azul – duas lâminas, duas medidas. Uma só cicatriz. A cidade.
Não falarei das algas marinhas exalando sua podridão ou de como o contorno de banhistas perdidos com suas silhuetas anônimas desaparecerão no horizonte como minúsculos insetos com seus dólares falsos trocados no câmbio negro. Alegria planejada. Entre as manobras do prático as redes hoje vão capturar uma colheita magra de peixes e algumas carcaças humanas abandonadas por algum predador marítimo.
Não falarei da cidade. Direi ao mar: os teus peixes morrem. Mas o mar não escutará e moverá as negras ondas as negras mãos líquidas que não gesticulam mas gritam palavras desconhecidas em línguas diabolicamente estranhas.
Não falarei enquanto falo ao mar. E ouço nomes que se assemelham ao teu nome. O querubim de olhos engraçados e sem um braço repete também o teu nome. Como um mantra, uma loa, um poema monótono, um poema bélico.
Não falarei sobre a dúvida ou as bifurcações impossíveis das quadras em forma de triângulo que se amontoam nas ruas de um bairro sujo e distante do porto. As pequenas ondas lentas e mornas se acinzentam com a chuva monótona de junho sob o barulho inaudível que se escuta. Mas também não falarei das ondas. Nunca as ondas roçando o teu torso macio de anjo, cidade michê vagando sem rumo, mutilada, boiando e apodrecendo nesse vaivém das águas.
ii
O navio se foi enquanto a mulher aguardava na fila do supermercado. Como um cão vadio ela guarda a noite e espera as portas se abrirem para escapar ao amanhecer. A cidade é esse cão vadio e agoniado que vaga sem rumo pelas ruas e aguarda palavras de amor num hotel barato. Debaixo da pele debaixo da roupa além da pele o corpo marcado da cidade aguarda.
A pele da cidade é um mapa. Cada parte da cidade é sua marca, uma cicatriz, um vestígio assombrado. Aquela mulher não sabe que o colecionador de peles está tão próximo. Ela, como a cidade, aguarda em cada esquina com seu corpo coberto de tatuagens e histórias.
Hoje as águas do canal invadiram a avenida. Aquela mulher é guido anselmi escapando. Fugindo pelo teto do carro para voar sobre a cidade. Fugindo dos vivos fugindo dos mortos presos atrás do vidro dos carros. Aquela mulher é um fellini. Um animal em retirada enquanto a procissão do Senhor morto atravessa.
O relógio está quebrado e o tempo ainda não sabe que toda beleza servirá apenas para recordar o garoto da noite anterior. As águas do canal baixaram. Debaixo da pele, debaixo da roupa além da pele o corpo daquela mulher aguarda. A cidade é o cão do poeta. A cidade está nua.
[jussara salazar | publicado em RECIFE E OUTRAS PARTES BAIXAS DO CORPO | 2014 | img. antonio filho]